POR NUNO BEIRÃO VIEIRA
Na primeira vez que ouvi falar de Eurico A. Cebolo estive mais atento a detalhes da sua história do que propriamente ao nome: entrei na sua loja com uns amigos músicos, que comentaram sobre o facto de o dono do estabelecimento escrever livros de música e romances pornográficos. Rimos um pouco sobre o assunto, mas nunca mais me lembrei do caso.
Só anos mais tarde, quando decidi aprender a tocar guitarra, reconheci o seu nome num livro que me indicaram, A Guitarra Mágica. Os comentários acerca deste livro e de dezenas de outros que escreveu eram de que se tratava de um clássico. Tudo que encontrei no livro – capa, canções, fotografia do compositor – remonta aos anos 70. Tudo lembra as típicas casas portuguesas de classe média repletas de napperons e louça inglesa. Mas a razão para se ter tornado um best seller e ser, ainda, um sucesso, é obviamente outra, o autor dispõe-se, como o próprio afirmou, “a tornar tudo simples, às vezes demais” – como se nos estivesse a mimar, a separar-nos as espinhas no prato.
Há detalhes no livro que trazem reminiscências da escola primária: rosas desenhadas um pouco por todo o lado, dedicatórias de amor à música, aos músicos e versos destacados como “Eu plantei rosas para vós colherdes. Colhei-as e eu me sentirei feliz”. Um curioso contraste com o autor de livros eróticos com deliciosos detalhes pornográficos (um exemplo: “desabotoou a carcela, tirou o pénis e meteu-lhe na vagina depois de lhe levantar a cauda”).
Consequentemente, a primeira imagem sobre Eurico Cebolo que me veio à cabeça, e que justificaria a estranha relação entre estes dois mundos, foi a de um ex-músico, provavelmente de uma banda rock falhada dos anos 60, com um historial de “sex, drugs and rock’n’roll”, reconvertido agora num orientador espiritual de artistas aprendizes.
Um homem sereno
Decidi marcar uma entrevista para perceber quem era este personagem e dirigi-me à sua loja, numa movimentada rua do Porto. Apesar de ser uma das maiores discotecas da cidade, não é a típica megastore que nos faz, olhando para o lustro dos instrumentos, desejar ser músicos. Esta é claramente uma loja portuguesa, com longo e agonizante corredor, com uma luz tépida, típica das casas de ferragens e com uma amontoada organização de instrumentos e material, que termina quando começa a casa de Cebolo, lá trás, numa cozinha.
Fui olhando na cara dos funcionários, à procura de um senhor de idade – a única referência física que tinha obtido sobre Eurico Cebolo. Descobrimo-nos num mesmo olhar ao fundo do balcão, e pouco depois tínhamos tudo acertado para umas futuras conversas.
A primeira visita acabou por ser um aperitivo. Com tanta informação que vinha das suas histórias pessoais, percebi que iríamos ter mais encontros para poder, à vontade, dissecar a sua vida. E foi o que aconteceu. Dias depois voltei. Toquei à campainha. Lá de dentro, demorando uns longos segundos até chegar à porta veio, mancando, o homem de idade, alto, magro, acompanhado por um pastor alemão – também ele é já velho e manco.
A imagem inicial que tinha construído sobre Cebolo foi logo à partida posta de parte na primeira entrevista. Ele não é um homem do rock’n’roll ou de qualquer outro género musical. Aliás, a música é uma parcela daquilo que impressiona, quando se o conhece. Sobressai uma humanidade e uma simplicidade que nos põem em sentido: se o tom de voz não bastasse, tudo o que diz relaciona-se sempre com um bem-estar, que o seu corpo, com as óbvias dificuldades de locomoção, parece contradizer.
Quis perceber esta possível serenidade e, antes sequer de terminar a minha frase, enquanto nos sentávamos, foi-me adiantando: “todos temos coisas boas e más, mas se temos mais do bom somos bons. Sempre vi a vida assim.”
Entre Vampiros e alternadeiras
Basta falar uns breves segundos com Eurico Cebolo para estabelecer uma conexão com o que se sente quando se lêem alguns dos seus poemas, letras ou composições musicais, sobretudo dedicados à sua mãe: fica-se com a impressão que este homem de 72 anos brinca ainda no seu jardim infantil, às vezes de uma forma inocente, criando à sombra de um amor que ele crê incondicional. ”O meu pai era bastante mau e batia-nos, mas não tinha culpa de ser assim, era bêbado. Teve as suas razões para isso. Mas a minha mãe deu-me todo o amor do mundo, por isso sou rico. Temos que ver é o lado bom da vida, ser optimistas.”
Mas há uma linha que divide a meio a sua vida e que transforma e explica o seu optimismo num acto de sobrevivência sublime: um acidente de viação aos 18 anos, que paralisou parte do seu corpo, impossibilitou-o de tocar para o resto da vida. Ironicamente, coincidiu com um regresso a Portugal para pagar uma promessa por um diagnóstico de doença degenerativa que tinha sido um engano, quando vivia já em Moçambique.
O nosso país tinha sido importante na sua carreira como músico, pelas influências que sofreu do pai. “Ele teve pequenas casas de fado no Porto – até eram mais tascas. E foi aí que contactei com a música. Apesar de o meu pai não tocar muito bem, conseguia animar aquilo. Cheguei a cantar fado umas vezes ainda garoto, e inspiro-me muitas vezes nos sentimentos que o fado desperta”, conta.
Também a música clássica esteve presente. “Púnhamos um vinil na grafonola e passávamos, eu e um amigo, horas a rir com aquelas vozes finas da ópera de Bizet, Carmen. Aquilo ficou-me entranhado”, recorda. Mas foi somente em Moçambique – para onde emigrou muito cedo – que se afirmou como músico, autodidacta: “Comprei o primeiro acordeão, o meu instrumento favorito, e tive quatro aulas de música. Depois quis aprender por mim. Passados três meses, já tocava tão bem… tocava 13 horas por dia de música clássica.”
Cebolo refere-se a estes momentos como façanhas, e parece-me lógico que se alimenta das suas memórias para continuar a produzir: há um processo de eterno retorno à condição de músico como uma forma de resistência.
Um passo definitivo da sua carreira foi a banda que formou com mais dois membros, “Os Vampiros”, e que animavam as boates mais famosas de Lourenço Marques: o Pinguim, o Luso, o Aquário e a Cave. E este é um elemento importante da sua história: além da independência financeira, parece haver uma nova recompensa que a música lhe traz, as alternadeiras. Por detrás de toda a fragilidade física e postura romântica, há uma versão mais hardcore de Cebolo (exposta em romances como A Prostituta Virgem, Casei com a Minha Irmã ou o famoso Falo Perdido), que é explicada por esta relação com as senhoras que conhece nas boates, a quem chama de “grandes mulheres”.
Apaixonavam-se por ele “como um filho, porque elas não necessitavam de um marido.” E viam-no como um confidente, por isso ficavam muitas vezes a dormir em sua casa onde “desabafavam, pela confiança” que tinham nele. Esta acabou por ser uma resposta antecipada às minhas frequentes dúvidas sobre pormenorizados detalhes que encontrei nos romances e que denunciavam um facto interessante: mesmo os actos mais perversos que ali se encontram vestem sempre de cor-de-rosa, de uma aparente e perturbante inocência, como se essa fosse a forma de absolvição que encontrava para oferecer às suas companheiras de vida.
“Qualquer um aprende”
Estes romances hardcore, num total de dez, não estão à venda. Só se podem obter como oferta na compra de um instrumento, uma estratégia de sucesso que o ajudou a dar-se a conhecer. Mas não são eles que fazem de Eurico Cebolo uma figura ímpar do panorama musical nacional. Foram os livros mágicos de iniciação musical: 51 manuais sobre nove instrumentos, traduzidos em Inglês e Francês, exportados para vários países, que dissecam todas as possíveis dificuldades que alguém possa encontrar na aprendizagem.
“Há que incentivá-los [aos aprendizes], e se não aprendem de uma forma, ensina-se doutra. Qualquer um aprende. Enquanto professor, nunca tive um aluno que desistisse”, gaba-se. O ensino é para este senhor a forma encontrada para canalizar a frustração, que às vezes ainda sente por não poder tocar: “às vezes dá-me vontade, quando ouço música, comovo-me. Lembro-me do que não consigo fazer, tocar. Mas a vida é como um rio que vai por um lugar e depois não pode seguir, então tem que virar para o outro lado. Talvez assim tenha sido mais útil às pessoas. Ensinei e musiquei muitas outras coisas.”
À medida que a noite avançava, dei por mim cada vez mais rendido à sua presença. Sentia-o às vezes como um espelho. A sua estranha inocência aos 72 anos pasma. Tentei por variadas maneiras furar a sua privacidade, testar tamanha capacidade de levar porrada na vida e continuar assim falando daquele modo, como se tudo na vida fosse simplesmente arbitrário e isso fosse razão suficiente para ser feliz. Acabei num monólogo e reflectido pela sua sabedoria.
Tive tempo ainda para ouvir algumas canções, musicadas por ele e cantadas ali, um mini-concerto para mim. Da lista de mais de mil que já compôs, entre as quais variadíssimos prémios de música popular, escolheu três fados. Defendeu-se em partes das letras que exigiam mais entoação, dizendo que há cordas vocais que já não funcionam. Mas já não era necessário ouvir qualquer emenda à sua voz. Da mesma forma que a sua morna loja esconde a casa onde vive mais atrás, coberta por um belo terraço com plantas, também a sua música é só a entrada para uma dimensão rara, um enclave humano dos tempos modernos.
No fim, à saída do gabinete, baixou-se e puxou de uma caixa de ferramentas transparente. Lá dentro maçãs, lustradas. Lava-as com sabão e põe-nas ali para os funcionários comerem. Tirou duas e ofereceu-me uma. Disse-me para sempre as comprar pequenas e somente nas mercearias. Despedimo-nos sorrindo e mastigando.